O alastramento da pandemia de COVID-19, que culminou em uma série de lockdowns ao redor do mundo, levou parcela considerável dos setores de indústria e serviços no Brasil a ser paralisada, penalizando severamente a atividade econômica no país. Consequentemente, o consumo de energia elétrica nos setores produtivos foi drasticamente reduzido, afetando em larga escala a demanda no Sistema Interligado Nacional (SIN)¹.
Apesar de o consumo doméstico caminhar no sentido oposto, apresentando aumento na demanda com pessoas em casa utilizando eletricidade, o panorama geral previsto ainda é de uma expressiva queda líquida de demanda, e as implicações desse fenômeno nas empresas do Setor Elétrico Brasileiro (SEB), como veremos, não são triviais.
Antes de começar a explicar o que está acontecendo, é preciso esclarecer, ainda que de forma simplificada, como funciona a dinâmica do SEB no que tange a contratação e a prestação dos serviços associados à geração, transmissão e distribuição. Para começar, existem dois ambientes de contratação: o Ambiente de Contratação Regulada (ACR) e o Ambiente de Contratação Livre (ACL). Contratos celebrados em ambos são registrados na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE)², sendo a principal diferença entre os dois (ao menos para os fins desta análise) o seguinte: enquanto no primeiro caso a contratação de energia é compulsória e associada a termos estabelecidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL)³; no segundo caso, os consumidores livres escolhem seus fornecedores e negociam termos como preços, prazos e garantias, em acordos bilaterais sem a intermediação da ANEEL.
Como forma de assegurar maior previsibilidade de receita, as empresas do SEB, como via de regra, firmam contratos de longo prazo para compra e venda de energia e lastro, de forma que mudanças abruptas no perfil da carga não afetam todos os agentes da mesma maneira. Nesse sentido, toda energia consumida a mais ou a menos do que foi delimitado nos contratos é liquidada pela CCEE ao custo do Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) que, por sua vez, se encontra no piso, em função das boas afluências no período recente.
Desta forma, as empresas que firmaram contratos para compra de energia antes da crise (sejam elas distribuidoras, no mercado cativo, ou comercializadoras, no mercado livre) sofrem com a variação da demanda e dos preços (quando renegociando a energia ao piso do PLD), enquanto a contraparte que se comprometeu com a venda de energia incorre em risco de crédito - caso as compradoras não sejam capazes de honrar seus compromissos. Vale ainda ressaltar que enquanto os contratos firmados no mercado livre estão mais sujeitos a renegociação dadas determinadas cláusulas de força maior, os contratos firmados no mercado cativo são mais resilientes, o que confere menor risco de crédito aos geradores e transmissores.
No médio prazo, por outro lado, as consequências de uma economia fragilizada têm potencial para continuar a afetar o comportamento dos consumidores e, em última instância, os lucros das empresas, em especial no segmento de distribuição, em função do aumento da taxa de inadimplência e das perdas não técnicas (furtos de energia). No longo prazo, espera-se ainda uma postergação de investimentos generalizada em todos os segmentos.
Entretanto, enquanto o cenário que se apresenta é indiscutivelmente preocupante, a resposta da ANEEL, a partir de suas medidas de mitigação, traz mais tranquilidade ao setor apresentando propostas que visam, dentre outros objetivos, garantir a solvência das contrapartidas compradoras, de forma a evitar o risco de um colapso do sistema. Dentre essas medidas, destacam-se: o repasse da ordem de R$ 2,02 bi do fundo de reserva para distribuidoras e agentes do mercado livre; e o pagamento integral das tarifas dos consumidores cadastrados na tarifa social (Medida Provisória nº 950/2020). Já a consequência dessas medidas no longo prazo é um provável aumento na tarifa no mercado cativo que, por conseguinte, incentiva a migração para o mercado livre, que deve se expandir ao longo dos próximos anos.
Assim sendo, podemos concluir que, com o sucesso das medidas tomadas pela ANEEL, o setor como um todo deve ser protegido. No entanto, as empresas que atuam no segmento de distribuição continuam sendo as mais expostas a risco, não apenas pela sobrecontratação derivada da queda inesperada da demanda, no curto prazo, mas também pelo agravamento da inadimplência e dos furtos de energia.
De forma semelhante, as comercializadoras devem ver suas margens serem reduzidas conforme o volume de energia negociado é reduzido em consonância com a queda da demanda. Enquanto isso, as empresas de geração e transmissão que atuam majoritariamente no mercado cativo se demonstram mais preparadas para receber os impactos da pandemia sem maiores perdas, dada a natureza de suas receitas previsíveis, asseguradas por contratos de longo prazo e seguros.
Referências:
[1] “Consumidor pagará em até 5 anos empréstimo para apoiar elétricas após coronavírus”. Investing, abril de 2020. Disponível em: <https://br.investing.com/news/coronavirus/consumidor-pagara-em-ate-5-anos-emprestimo-para-apoiar-eletricas-apos-coronavirus-739439>. Acesso em: 21 de abril de 2020.
[2] “Governo federal adota novas medidas para enfrentar os impactos do Coronavírus no setor elétrico”. Agência CanalEnergia, abril de 2020. Disponível em: <https://www.canalenergia.com.br/artigos/53132229/governo-federal-adota-novas-medidas-para-enfrentar-os-impactos-do-novo-coronavirus-no-setor-eletrico>. Acesso em: 21 de abril de 2020.
[3] “Mercado de energia tem avisos sobre força maior por Coronavírus”. UOL Economia, março de 2020. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/03/24/mercado-de-energia-tem-avisos-sobre-forca-maior-por-coronavirus.html>. Acesso em: 21 de abril de 2020.
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