Por Gabriel Coelho
Há pouco mais de 8 anos e meio atrás, o poder das palavras se fez presente em um dos mais importantes discursos da história do Banco Central Europeu. À época, o continente vivia a crise do Euro em um de seus maiores picos de estresse, uma vez que a Grécia se encontrava severamente endividada após o tremendo esforço fiscal empreendido para suavizar o choque de 2008 e a descoberta de que seu governo ocultava o real tamanho da dívida pública.
A quebra de credibilidade nos números fiscais gregos desencadeou uma abertura significativa da curva grega, tornando o custo de financiamento proibitivo e forçando planos de resgate nos anos da crise. Em um de seus momentos mais críticos em 2012, os investidores viam sérias ameaças à circulação do Euro nas praças de Atenas, uma vez que voltar a uma moeda nacional tornaria possível que o governo ganhasse controle sobre sua divisa, em uma vã tentativa de controlar a dívida, a qual, dessa vez, “seria em sua própria moeda” e retomar controle sobre suas políticas econômicas.
O mercado temia o pior: a saída grega poderia acarretar uma espiral de outras fugas de países severamente endividados da Zona do Euro, e a moeda, criada como parte de um projeto de paz e união em um continente assolado por guerras sangrentas, poderia deixar de circular nas praças de Roma e de Lisboa, uma vez que Itália e Portugal também se encontravam severamente endividadas.
Dívida/PIB - Países mais atingidos
Em %
Dados: OCDE - Elaboração Própria
Mesmo assim, a Europa aguentou e o Euro se solidificou cada vez mais após a crise, cimentando seu lugar ao lado do dólar, libra e iene como moeda forte e de alta circulação. Parte do motivo para isso, porém, reside em uma pessoa, o Doutor em Economia pelo MIT e à época presidente do BCE: Mario Draghi.
O que for preciso
Nascido na Roma do pós-guerra, em uma Itália destruída pela campanha italiana na Segunda Guerra, Draghi aprendeu a lidar com dificuldades bem jovem. Seu pai, um banqueiro, e sua mãe, uma farmacêutica, o deixaram órfão com 15 anos, em mortes com poucos meses de intervalo entre elas. Mario também não era filho único, possuía dois irmãos menores, pelos quais se tornou responsável e, apesar de tudo, se formou no Instituto Massimo, na capital, com impacto marcante de seu professor de filosofia, Franco Rozzi.
Em seguida, perseguiu a carreira em economia, até conseguir um doutorado no MIT, sendo diretor-geral do tesouro italiano de 1991 até 2001, o que o fez servir 11 governos.
“11 governos em 10 anos?”, talvez o leitor se pergunte, mas é verdade: Roma troca tanto de comando quanto um time brasileiro sob risco de rebaixamento no Campeonato Brasileiro e, geralmente, ambos não funcionam. Maquiavel certamente se reviraria no túmulo se soubesse da tamanha falta de “virtú” entre os ministros de seu país.
Aos poucos, Draghi construiu sólida carreira profissional no setor público e privado, tendo posteriormente atuado como VP na Goldman Sachs e presidente do Banca d'Italia. Não demorou para que seu nome fosse cogitado para substituir Jean-Claude Trichet, presidente do BCE até 2011, e Draghi foi esperto, conquistando apoio inclusive da Chanceler Angela Merkel, após a saída de seu potencial concorrente do Bundesbank, Alex Weber.
“Ele é muito próximo à nossa cultura de estabilidade e política econômica sólida
Angela Merkel, em entrevista ao Die Ziet, sinaliza apoio a Draghi.
Talvez a Chanceler, dada a frase, esperasse mares mais calmos e estáveis, mas o que veio foi a hecatombe explicitada, esta que foi dominada em apenas três palavras pelo presidente Draghi. Em meio ao caos, em 26 de julho de 2012, ele discursou em um evento em Londres. Poucos esperavam algo desse pronunciamento, não era nada formal, mas sim apenas um evento ligado às Olimpíadas à época, direcionado aos investidores globais e sediado pelo primeiro-ministro à época, David Cameron. Inclusive, o discurso do presidente do BCE começou sem nexo, Mario fez uma analogia entre Euro e abelhas e falou por mais 6 minutos.
Em dado momento, Draghi respirou e disse:
“Dentro de nosso mandato, o BCE está pronto para fazer o que for preciso para preservar o Euro. Acreditem em mim, será suficiente”
Poucos lembram o que foi falado após esse momento, mas esse trecho perdurou e dominou as manchetes dos jornais europeus.
Os mercados reagiram de imediato: as curvas de juros fecharam e o Euro valorizou. Era esperado um pacote de suporte significativo do Banco Central Europeu e, uma semana depois, o banco anunciou um programa de compra de títulos dos países mais afetados, o que efetivamente deveria achatar os vértices nas curvas dessas nações, reduzindo o custo proibitivo de financiamento que se impunha e propiciando fôlego aos governos. À época, o pacote nem chegou a ser utilizado formalmente, o mercado retomou apostas no Euro e ganhou nova confiança nos títulos públicos de maior risco no continente. Houve outros fatores, mas a reação foi puxada principalmente pelo “Whatever It Takes”, em inglês, de Mario Draghi.
A história não acaba aí: Mario saiu do BCE em 2019, mas não tardou para que sua nação o chamasse em um pedido de socorro. No início de fevereiro, após a renúncia e tentativa fracassada de retorno do ex-primeiro-ministro Giuseppe Comte, dada discordâncias relacionadas com o uso do dinheiro do fundo europeu entre ele e outros líderes políticos, o presidente Sergio Matarella convocou Draghi para assumir o posto, evitando novas eleições em período crítico. Seu governo deverá ser um governo de coalizão nacional, com o objetivo de reconstruir o país após a crise do Covid-19. O desafio, porém, é grande.
O seu novo desafio
A economia italiana registrou a pior recessão desde o pós-guerra, com queda de 8,8% do produto interno bruto. A queda na atividade somada aos esforços fiscais engendrados em 2020 para suavizar o choque da Covid-19 deixaram o país com uma relação dívida/PIB de quase 160%, e mesmo com juros baixos - em meio a números negativos nos vértices curtos e de 0,67% no de 10 anos -, o país caminha por um território espinhoso. Aqui, é necessário esclarecer que, por ser um país desenvolvido e integrante do Euro, com um histórico melhor, a Itália goza de muito mais credibilidade do que um emergente como o Brasil, por exemplo, mas, mesmo assim, uma dívida elevada pode ser uma barreira ao crescimento futuro se mantida por muito tempo.
Há, portanto, dois jeitos de resolver a situação: o primeiro é reduzir a dívida nominalmente, por meio de cortes de gastos; e o segundo é fazer o país crescer. Ambos reduziriam não só a relação Dívida/PIB, mas também o pagamento de juros em proporção à receita do governo geral - que fechou 2019 em 13,3%, contra 3,9% na Alemanha - por meio da queda do risco e da elevação de receitas. Dado o longo caminho de recuperação adiante, cortar gastos no momento parece não só ineficiente, como também ameaçador em termos de estabilidade política em um momento complexo. O único caminho, portanto, é retomar o crescimento. Mas como?
A resposta é clássica, ao mesmo tempo que temida: reformas estruturais. A Itália cresce abaixo da média europeia há anos, e, se nada for feito, o padrão se manterá, como mostra o gráfico. A dificuldade política é sempre presente quando um país precisa realizar reformas estruturais, mas, dessa vez, terá que ser posta de lado.
Crescimento do PIB
Em %
Dados: OCDE - Elaboração Própria
Em primeiro lugar, o novo governo italiano necessita reduzir a burocracia e flexibilizar o ambiente de negócios, e isso passa por melhorar o sistema judiciário, o qual, de acordo com o Conselho Europeu em 2018, é um dos piores do continente, atrás até mesmo de Malta e Turquia. Para efeito de comparação, em 2016, o tempo para a resolução de casos comerciais é de 514 dias, com 4.1 litígios civis e comerciais pendentes a cada 100 habitantes, comparados com 2,4 na França e 0,9 na Alemanha, pouco mudou desde então.
Essa é só uma das facetas dos problemas que tornam a Itália um país tão difícil de se fazer negócios, atualmente sendo a 58° colocada do Ranking de Facilidade de Fazer Negócios do Banco Mundial, atrás de Kosovo e Quênia.
Além das dificuldades para as firmas no campo burocrático e legal, mostradas pelo ranking do BM, as condições de produtividade italianas também desapontam, sendo um dos principais fatores que seguram o crescimento sustentado.
Em uma apresentação no EuroForum, o presidente do Banca d’Italia, Ignazio Visco, mostrou um país que muito se assemelha ao Brasil. Estagnada e com baixo crescimento potencial, a Itália padece de problemas parecidos devido a ausência de uma melhora sustentada da produtividade italiana, que permitiria maior crescimento do PIB nos próximos anos.
Nesse sentido, alguns culpados despontam. Ignazio começa falando de educação e inovação, de cara, vemos as similaridades.
A Itália possui um gasto em P&D mais baixo que seus pares europeus, com 1,4% do PIB investidos em pesquisa e desenvolvimento, contra 2,4% da média da OCDE. Há também um baixo número de pesquisadores (5,5 a cada mil trabalhadores) em relação à média da organização (9 a cada mil). A fraqueza do gasto é fruto tanto do setor público, quanto privado, portanto, quando levamos em conta o número de publicações importantes normalizado pelo gasto em R&D, que é o dobro de países como França e Alemanha, percebemos que há espaços para novos investimentos em pesquisa, que já se mostra bastante eficiente e poderia apresentar ganhos de escala.
Ademais, do ponto de vista educacional, mais verbas seriam bem-vindas. Os resultados do PISA são decepcionantes, estando abaixo da média da OCDE em leitura, matemática e ciências no PISA. Há também forte desigualdade entre o Norte, com Lombardia e Piemonte, e o Sul, com Campânia, Calábria e Sicília, o que reforça o contraste de desenvolvimento norte-sul do país presente desde a unificação e o sucesso do Risorgimento após êxito do reino de Piemonte-Sardenha.
Resultados dos Testes do PISA
Leitura
Matemática
Ciências
Elaboração Própria - OCDE/Banca D’Italia
Outro problema é que os italianos parecem não ter anos de estudo suficientes, com 28% daqueles entre 25 e 34 anos com terceiro grau, contra 44% na OCDE e também uma boa parcela entre 15 e 24 anos (28%), que não estão estudando, trabalhando ou em programas de aprendizado, ou seja, os “nem-nem”. O principal culpado, de acordo com Visco, é a falta de cursos superiores mais voltados ao lado profissional, que são insuficientes ainda em território italiano. Com implementação adequada, haveria maior captura dessa faixa desocupada, além de maior acessibilidade às famílias, bastante afetadas por anos de crise e estagnação.
Entretanto, mesmo que expandissem os programas de ensino superior e houvesse maior investimento educacional como um todo, as firmas italianas parecem não demandar trabalhos de maior qualificação suficientemente para estimular alguma expansão por meio de remunerações mais elevadas. Esse “paradoxo” pode ser explicado pela elevada concentração da economia nas micro e pequenas empresas em setores comuns, cuja existência é fruto de um círculo vicioso no qual a baixa oferta de capital humano qualificado levou a salários menores, impedindo o investimento em educação por parte das famílias. Essa última consequência também levou a baixa propensão ao investimento dessas firmas, que encontram dificuldades em contratar trabalhadores qualificados, amplificando um ciclo ruim. Portanto, há necessidade de reformas estruturais, tal qual maior investimento, no sistema educacional italiano.
O menor tamanho “médio” das firmas na Itália também prejudica o crescimento potencial do país, dado que as melhores práticas de gestão possuem correlação positiva com o tamanho das empresas, ao passo que as menores firmas também não conseguem atrair gestores mais qualificados, que são necessários para crescerem, sendo esta uma via de mão dupla a ser resolvida.
Assim, com comandos familiares, a governança das corporações não costuma ser necessariamente a melhor em micro e pequenos negócios, o que se soma à menor qualidade educacional e traz piores práticas de gestão. Isso constitui um empecilho ao crescimento do setor privado, à adoção de novas tecnologias e inovações, ao sucesso de investimentos e, consequentemente, ao crescimento da produtividade. Por essa razão, países com maior presença de firmas maiores que o caso italiano costumam ter melhores práticas corporativas e favorecem o crescimento de sua economia.
Parcela da População Empregada por tamanho das firmas
Tamanho definido por número de empregados
Elaboração Própria - EuroStat/Banca D’Italia
Para efeito de comparação, Visco cita um dado que comprova seu ponto. Na Península Itálica, 25 mil empresas médias produzem metade do valor adicionado nos setores não financeiros, enquanto a outra parte é produzida por 4,3 milhões de firmas menores. Países como Alemanha e França possuem parcela de valor adicionado mais concentrada em firmas maiores, por exemplo. Por isso, o governo Draghi deverá ser bastante cuidadoso ao redesenhar ou apagar os programas econômicos da pandemia, dado que a manutenção do nível de suporte às pequenas e microempresas pode aprofundar o problema italiano de produtividade, assim como um grau inadequado de subsídios mantém vivas no Brasil firmas ineficientes. Essa preocupação é inclusive sustentada por um relatório do G30 co-autorado pelo próprio Mario, “Reviving and Restructuring the Corporate Sector Post-Covid - Designing public policy interventions”, que alerta sobre a necessidade de permitir a realocação de recursos provocada pelas mudanças estruturais devido a pandemia.
Valor adicionado por trabalhador segmentado em tamanho das firmas
Em milhares de euros
Elaboração Própria - EuroStat/Banca D’Italia
Por conseguinte, os empecilhos constituídos à inovação e destruição criativa por meio da regulação ou outros fatores precisam ser retirados, principalmente quando levamos em consideração que a Itália dificilmente terá um novo boom populacional ou um aumento expressivo do estoque de capital, restando somente à produtividade o papel de gerar crescimento de longo prazo. Para tal, também é necessário que o país saia do atraso e busque modernizar e reformar seu sistema educacional, de modo a impulsionar a geração de capital humano e busque eliminar incentivos a setores notadamente improdutivos que prejudiquem a alocação mais eficiente de recursos.
Outrossim, o governo italiano precisa realizar esforços para a maior digitalização da economia italiana, visto que isso também é atrelado a práticas melhores de gestão e à produtividade. Para se ter noção, a Itália, na UE, é a 25ª no índice DESI, que mede o nível de digitalização, ou seja, é uma das últimas nações no ranking. As tentativas da coalizão de Draghi deverão ser ainda mais urgentes, dado que a já elevada concentração em empresas menores age como barreira à adoção de novas tecnologias, de acordo com Visco, alimentando o círculo vicioso do atraso.
Dessa maneira, após um leve aprofundamento nos problemas econômicos italianos, é necessário que nos perguntemos: Mario conseguirá ou será trocado em 2 anos como o resto? Muitos citam, nesse exemplo, a história do Primeiro-Ministro Mario Monti, um tecnocrata chamado para tocar a austeridade italiana na Crise do Euro.
Agora, no entanto, a história é diferente. Para começar, não há austeridade a ser feita no primeiro momento, devendo os italianos decidirem como gastar as verbas do pacote fiscal europeu. Em segundo, Draghi já possui certo traquejo político, mas também muito prestígio como o homem que salvou o Euro.
Como a missão é mais fácil e Mario é favorecido pelo respeito que carrega, é provável que ele implemente certas reformas estruturais tidas como chaves, além de garantir alocação mais eficiente dos recursos da UE. O mercado, a princípio, concorda com essa ideia e, assim, a ponta longa italiana fechou frente à alemã desde que Draghi foi chamado no fim de janeiro, reduzindo o spread entre eles e os Bunds, o que mostra a confiança dos investidores.
ITA 10 anos x Bund 10 anos - Spread
Em bps
Elaboração Própria - Investing
Não é esperado que a Itália se transforme em sua vizinha germânica do norte, como água para o vinho, em dois anos (apesar das habilidades de Draghi), mas sim que apresente algum potencial de crescimento futuro que tire o país dessa contínua estagnação e que, consequentemente, traga mais estabilidade política e crescimento econômico, reconquistando parte do status que perdeu nas últimas décadas.
Referências
VISCO - Economic growth and productivity: Italy and the role of knowledge, BANCA D’ITALIA, 2020
G30 Working Group on Corporate Sector Revitalization - Reviving and Restructuring the Corporate Sector Post-Covid - Designing public policy interventions, GROUP OF THIRTY, 2020
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